Uma jornada pelas histórias que brotam de lendas antigas, atravessam culturas e renascem na ilustração botânica vintage
“Nesta quietude verde, deuses dormem em raízes e flores sussurram antigas histórias.”
Há textos que nascem de uma necessidade estética; outros, de uma necessidade histórica. Este brota de ambas.
Ao observarmos como os artistas vintage dos séculos XIX e início do XX representavam plantas com uma solenidade quase litúrgica, percebemos que suas pranchas e gravuras oferecem mais do que técnica e precisão científica: elas trazem narrativas. E, onde há narrativa, inevitavelmente há mito.
Enquanto artigos anteriores do VivaNow360 exploraram a botânica em rituais sazonais ou a linguagem secreta das flores, aqui seguimos outro percurso: o da fundação mítica. Buscamos entender como certas plantas se tornaram personagens protagonistas de lendas e como esses mitos renasceram, séculos depois, no traço da arte botânica vintage.
Trata-se de um ângulo mais literário e simbólico — ideal para quem deseja compreender como a botânica se transforma, silenciosamente, em narrativa cultural.
Quando as Plantas se Tornam Símbolos: A Linguagem Vegetal da Antiguidade
Antes de entrarmos nas histórias específicas, vale compreender a lógica que levou civilizações tão distintas a atribuírem significados profundos à flora. Para povos antigos, como os egípcios, romanos, gregos e celtas, a natureza funcionava como uma vasta biblioteca simbólica baseada em quatro pilares de observação:
- Características Naturais: Perenidade ou queda sazonal, presença de espinhos ou frutos e a resistência às intempéries.
- Utilidade Prática: O papel das plantas medicinais na cura, das árvores estruturais na construção e das espécies aromáticas nos rituais sagrados.
- Comportamento Fenológico: O florescimento em datas solares marcantes ou o vigoroso renascimento de uma planta após ser severamente podada.
- Metáforas Sazonais: O ciclo do que cai e retorna, representando os mistérios da vida, morte, renascimento e a crença na imortalidade da alma.
Séculos depois, os ilustradores vintage herdaram esse repertório. Ao desenhar uma folha de louro, não estavam apenas registrando a espécie Laurus nobilis; estavam evocando milênios de memória coletiva e transformando a botânica em uma narrativa de glória e resistência.
Mitologia Egípcia: A Botânica da Eternidade e do Sol
Para os egípcios, a flora era a manifestação física do ciclo solar e da vitória sobre a morte. O Rio Nilo não apenas irrigava a terra, mas servia como o cordão umbilical que unia o mundo dos vivos ao reino de Osíris, utilizando plantas como símbolos de ressurreição.
O Lótus Azul: O Despertar do Sol
O Lótus Azul (Nymphaea caerulea) é a planta mais icônica da cosmogonia egípcia. O mito conta que, no início dos tempos, um lótus emergiu das águas primordiais do Nun — representação de um oceano infinito e caótico que existia antes da criação, servindo como a fonte de potencial ilimitado de onde emergiram o primeiro deus e todo o universo egípcio — e, ao abrir suas pétalas, revelou o deus Sol, Rá, em sua forma infantil, iluminando o mundo. Por fechar-se à noite e submergir para florescer novamente ao amanhecer, a planta tornou-se o símbolo supremo do renascimento.
Ilustradores botânicos do século XIX, fascinados pela expedição de Napoleão ao Egito, retratavam o lótus com um azul etéreo e vibrante. Nas pranchas botânicas dessa era, a planta era frequentemente isolada para destacar a geometria perfeita de suas pétalas, evocando a ordem divina, Ma'at, que os egípcios viam na natureza.
O Papiro: A Coluna do Mundo
O Papiro (Cyperus papyrus) não era apenas o suporte da escrita, mas a própria representação do pântano primordial de onde a vida surgiu. Suas hastes eram usadas na arquitetura para criar as "colunas papiriformes", transformando templos em florestas de pedra sagradas. O papiro era associado à deusa serpente Wadjet e simbolizava o frescor e o vigor da vida.
Artistas botânicos clássicos costumavam detalhar a inflorescência em forma de "umbela" (como raios de Sol), enfatizando a estrutura fibrosa e a altura monumental da planta. O verde profundo utilizado nessas ilustrações servia para contrastar com a aridez do deserto, reforçando a ideia de que onde há papiro, há vida abundante.
O Sicômoro: A Proteção das Deusas
A figueira-sicômoro (Ficus sycomorus) era considerada o corpo das deusas Nut e Hathor na terra. Mitologicamente, acreditava-se que essas árvores ficavam no limiar entre o mundo dos vivos e o dos mortos, onde a deusa emergia da folhagem para oferecer água e pães às almas dos falecidos. Era a árvore da proteção materna e da imortalidade.
Nas ilustrações botânicas vintage, o sicômoro é retratado com troncos robustos e frutos que brotam diretamente do caule (caulifloria). Os artistas frequentemente focavam na textura da casca e na opacidade das folhas, capturando a aura de "árvore-abrigo" que define sua importância mítica como guardiã das almas.
Mitologia Grega: A Botânica da Transformação
A Grécia transformou plantas em personagens. Nada expressa isso tão bem quanto os mitos de metamorfose — narrativas onde destino, corpo e vegetal se fundem.
Dafne: O Louro como Destino Vivo
Perseguida por Apolo, a ninfa Dafne é transformada em louro (Laurus nobilis). O mito explica a longevidade da árvore e sua sacralidade ligada ao triunfo. Artistas do século XIX representavam folhas de louro com precisão escultórica, ecoando a solenidade do mito em coroas e guirlandas.
Narciso: A Flor que Nasce do Reflexo
O jovem que se apaixona pelo próprio reflexo morre à beira d’água; em seu lugar, surge o narciso (Narcissus). Ilustradores vintage capturaram a essência trágica deste mito retratando a flor frequentemente inclinada sobre superfícies aquáticas ou curvada sobre si mesma, usando a arquitetura natural da planta como narrativa silenciosa.
A Oliveira de Atena: Sabedoria Enraizada
A oliveira (Olea europaea) nasce como presente de Atena à cidade que a escolheu como protetora. A árvore é o ícone máximo da civilização por oferecer sustento, luz e paz. Na iconografia clássica e vintage, suas folhas prateadas são iluminadas para destacar o contraste entre luz e sombra, simbolizando o equilíbrio entre a razão estratégica e os mistérios da terra — a própria essência da sabedoria da deusa.
Mitologia Romana: A Botânica Como Moral
Se os gregos transformavam, os romanos instruíam. Na Roma Antiga, as plantas carregavam mensagens cívicas, políticas e morais.
A Figueira de Rômulo e Remo: A Origem
O nascimento mítico de Roma está atrelado à outra figueira, a (Ficus Ruminalis), que abrigou, segundo a lenda, a loba e os gêmeos fundadores, Rômulo e Remo. Para os romanos, a árvore simbolizava fecundidade e ancestralidade. Ilustradores clássicos acentuavam suas raízes expostas e troncos sinuosos, usando o contraste entre as folhas largas e a seiva leitosa como metáforas visuais sobre origens que, embora antigas, nutrem e sustentam o presente.
O Cipreste: A Árvore do Silêncio
Associado ao luto e à eternidade, e ao deus Plutão na mitologia romana, o cipreste (Cupressus sempervirens) nasce do choro eterno do jovem Ciparisso. Sua forma esguia e vertical, apontando para o céu, é uma constante na arte vintage. Sua folhagem densa e escura é frequentemente retratada em composições de forte contraste, surgindo como uma oração silenciosa ou um monumento botânico à memória dos que partiram.
Mitologia Celta: O Reino das Árvores-Conhecimento
Entre os celtas, o simbolismo vegetal alcança um nível raro de complexidade espiritual. As árvores eram consideradas entidades vivas, com consciência e caráter — e cada espécie possuía atributos mágicos.
O Carvalho: Portal Entre Mundos
Registros históricos mostram que o carvalho (Quercus robur) era venerado pelos druidas e povos celtas — assim como por germânicos e gregos — pois representava o eixo vertical (Axis Mundi) entre o céu e a terra. Na arte vintage, essas árvores são ilustradas com troncos retorcidos e robustos, ressaltando sua antiguidade, presença monumental e força física.
Curiosidade Etimológica: O próprio termo "Druida" carrega a força dessas florestas em sua origem. Estudos etimológicos sugerem que a palavra deriva de raízes proto-célticas que combinam os conceitos de "carvalho" (derwo) e "conhecimento" (weid). Assim, ser um druida significava, literalmente, ser aquele que possui o "conhecimento do carvalho", reafirmando que, para essa cultura, a sabedoria não estava em livros, mas enraizada na própria natureza.
O Visco: A Planta que não Toca a Terra
O visco (Viscum album), colhido em rituais sagrados, foi símbolo de cura e reconciliação. Seu crescimento sem tocar o solo, alimentando-se da planta hospedeira, causava fascínio botânico e espiritual. Ilustrações antigas destacavam a suspensão das suas bagas translúcidas e sua natureza aérea, retratando-as como esferas de luz que habitam o espaço entre os mundos.
O Simbolismo Cristão: Entre Espinhos, Milagres e Ressurreição
O cristianismo absorveu e ressignificou antigas metáforas vegetais, transformando-as em símbolos morais, litúrgicos e iconográficos.
A Videira: Comunhão e Ciclo
Associada à figura de Cristo (“Eu sou a videira verdadeira”), ela simboliza a comunidade, o sacrifício e a renovação. Na arte botânica vintage, a videira (Vitis vinifera) é uma das espécies mais ornamentais, o detalhe cuidadoso nos gavinéis — esses pequenos “braços” em espiral que se prendem ao suporte — funciona como uma metáfora visual de conexão e dependência espiritual.
O Lírio: Pureza e Revelação
Conhecido como Lírio-de-São-José, Lírio-cândido ou Açucena (Lilium candidum), tornou-se o símbolo máximo da pureza e da Virgem Maria. Em álbuns botânicos antigos, é quase sempre representado com luz suave e sombras mínimas, uma técnica que os ilustradores usavam para sublinhar a sua brancura imaculada e sua natureza divina.
A Coroa de Espinhos: A Natureza como Testemunha
Espécies como a (Ziziphus spina-christi) foram registradas com precisão anatômica rigorosa no final do século XIX. Os ilustradores destacavam os espinhos longos, rígidos e entrelaçados, sugerindo que a própria natureza, em sua forma mais áspera, foi testemunha e participante da narrativa da Paixão.
A transição dessas plantas do altar para o imaginário popular revela como a botânica moldou nossa cultura. Complementando as perspectivas históricas, você pode conferir como esses símbolos se transformaram em ícones festivos no artigo A Natureza do Natal, que detalha o simbolismo botânico das celebrações modernas.
Mandrágora: O Limiar Entre Cura e Mistério
Entre todas as plantas míticas, poucas carregam um imaginário tão intenso quanto a mandrágora (Mandragora officinarum). Da Antiguidade ao Medievo, ela ocupou um lugar ambíguo: foi antídoto, veneno e amuleto. Sua fama reside na raiz antropomórfica que, ao mimetizar a forma humana, alimentou a lenda de que a planta soltaria um grito fatal ao ser arrancada da terra.
Curiosamente, a arte botânica vintage dos séculos XIX e XX raramente a representou de forma grotesca ou fantástica. Em vez disso, os ilustradores optavam por uma abordagem científica e elegante, destacando suas folhas largas e ovais e suas flores purpúreas. Esse contraste entre o mito assustador do "homúnculo vegetal" e a estética refinada da prancha botânica reforça a dualidade que a tornou tão fascinante: a beleza que esconde o perigo.
Nota de Curiosidade: Na medicina antiga, ela era usada como um dos primeiros anestésicos conhecidos, o que explica por que a arte vintage frequentemente a posiciona entre as "plantas de poder" e cura, e não apenas no reino da feitiçaria.
Para quem deseja mergulhar nas sombras desta narrativa, exploramos o lado mais oculto desta espécie em nosso artigo especial Entre Abóboras e Mandrágoras: A Arte Botânica no Imaginário do Halloween.
Quando o Olhar Vintage Ressignifica Mitos
O movimento vintage e a chamada "Era de Ouro da Ilustração Botânica" representam muito mais do que um estilo gráfico, são uma forma de ver o tempo. Ao retratar plantas com rigor técnico e profunda sensibilidade estética, os artistas dessa época não apenas catalogaram espécies, mas preservaram camadas simbólicas ancestrais e conferiram a cada ramo uma aura memorial. A arte vintage não relata mitos de forma óbvia; ela os sussurra através de detalhes, sombras e composições.
Ao revisitarmos essas obras em 2025, percebemos uma verdade essencial: nenhuma planta está sozinha na história. Cada espécie — seja o louro da glória, o lírio da pureza ou o carvalho do equilíbrio — carrega memórias culturais de povos que observaram, temeram e celebraram a natureza.
E assim, entre raízes e pétalas, reencontramos a botânica como uma linguagem antiga, visual e eternamente viva. Se você deseja transformar a simbologia vegetal em seu próprio repertório artístico e visual, explore os outros artigos desta série no VivaNow360 e descubra como a história moldou permanentemente a nossa visão do mundo natural.
A botânica mística é um campo vasto. Abaixo, compartilhamos as obras que nos ajudaram a desvendar as narrativas ocultas sob as raízes e pétalas da arte vintage.
BRITISH MUSEUM. Ancient Egypt: Flora and Fauna. Londres: British Museum, 2025. Disponível em: www.britishmuseum.org. Acesso em: 19 dez. 2025.
FRANCE. Commission des sciences et arts d'Egypte. Description de l'Égypte: ou recueil des observations et des recherches qui ont été faites en Égypte pendant l'expédition de l'armée française. Paris: Imprimerie Impériale, 1809-1829.
UNIVERSITY OF OXFORD. The Ancient Egypt Garden. Oxford: Oxford University Herbaria, 2025. Disponível em: herbaria.plants.ox.ac.uk. Acesso em: 19 dez. 2025.
REDOUTÉ, Pierre-Joseph. Choix des plus belles fleurs. Paris: [s. n.], 1827. Disponível em: www.metmuseum.org. Acesso em: 19 dez. 2025.
WILKINSON, Richard H. The Complete Gods and Goddesses of Ancient Egypt. Londres: Thames & Hudson, 2003.
OVÍDIO, Publius Naso. Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017. (Obra base para os mitos de Dafne e Narciso).
PLÍNIO, o Velho. História Natural. Seleção e tradução. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004. (Referência para botânica romana e usos medicinais antigos).
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 31. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.
BLUNT, Wilfrid. The Art of Botanical Illustration. New ed. Woodbridge: Antique Collectors' Club, 1994. (Referência definitiva sobre a evolução técnica da ilustração botânica).
GRAVES, Robert. A deusa branca: uma gramática histórica do mito poético. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. (Estudos sobre mitologia celta e o simbolismo das árvores).
IMPELLUSO, Lucia. Nature and Its Symbols. A guide to imagery. Tradução de Stephen Sartarelli. Los Angeles: Getty Publications, 2004. (The Getty Guide to Imagery).









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